“Vida ao contrário”
Crónica de Janeiro de 2023
Nunca estamos bem. Ou não temos dinheiro ou não temos saúde. Ou queremos estar sozinhos ou queremos que não nos larguem a mão. Ou queremos poupar muito para o futuro ou gastar tudo porque só se vive uma vez. Ou gostávamos de um trabalho de sonho mesmo com outras áreas a correr mal ou preferimos que tudo o resto corra bem, mesmo não tendo um trabalho maravilhoso. Ou sentimos que o que conta é o que se é. Ou fazem-nos sentir que o que conta é o que se tem.
Sabemos realmente o que queremos? Ou este jogo dos contrários faz parte da própria vida?
Viver insatisfeito é uma realidade de muitos de nós. Parece que nos falta sempre subir mais um degrau ou realizar mais aquele ou o outro projeto. É como que vivêssemos para o que não temos ou não nos foi dado ao invés de nos concentrar-nos (e de disfrutarmos) daquilo que já está a fazer parte da nossa realidade. Temos sempre os “mas” a dançar na nossa cabeça e no nosso coração:
“Sim, isso está a correr bem, mas aquilo…”
Quase me parece que temos gosto em boicotar as nossas alegrias já existentes, o nosso dia-a-dia já, tantas vezes, recheado de tesouros e de bênçãos. Na verdade, vivemos a correr atrás do prejuízo por nunca conseguirmos contemplar aquilo que já é nosso.
Se eu não pensar tanto no que me falta, o que já consigo dizer que tenho?
Já pensei no tanto que me é dado a cada dia? Já agradeci?
O que nos falta, mesmo, é praticar mais a gratidão. Esquecer, por momentos, as hipóteses, os cenários imaginados e semi-perfeitos e viver, apenas, com o que nos é dado hoje. E agora.
Pôr em prática esta teoria tem muito que se lhe diga e vai ser, provavelmente, difícil. Mas, se conseguimos a proeza de viver focados num tempo que já não temos (no passado) ou no que ainda não chegou (no futuro) não seremos também capazes de nos desafiar a viver no presente?
Entre as mil e uma coisas que não sabemos, há uma certeza que nos é dada:
Só temos o momento que temos.
Que vamos fazer com isso?
“Vive a tua vida”
Crónica de Dezembro de 2022
Ocupamo-nos demasiado da vida dos outros. Vivemos para nos comparar com o que os outros fazem, com os carros que os outros têm, com as casas bonitas que compraram, com as famílias perfeitas que aparentam ter, com os empregos de sonho que conseguiram, com as férias paradisíacas publicadas no Instagram.
Enquanto nos vamos comparando e julgando à luz do que cremos que os outros são, estamos a viver mal e a viver pouco. Estamos, mais ainda, a viver uma ilusão que nos deixa infelizes e desanimados.
A comparação e o desejo de ter isto ou aquilo que o outro tem é inevitável, mas a vida alheia não pode ser premissa para a nossa própria vida. A verdade é que, muitas vezes, o que julgamos ver e encontrar na vida dos outros pode não existir realmente. Aquilo que vemos é só o que os outros nos deixam ver e isso quase nunca corresponde à verdade toda.
Mas não há vidas melhores que a minha?
Depende daquilo em que estás a pensar quando fazes essa pergunta, mas, na realidade, cada vida e cada experiência é diferente da outra e os desafios inerentes a essa realidade podem ser exigentes numa medida que a tua compreensão não alcança.
Mais do que viveres a tua vida para alcançar algo parecido com o que os outros parecem ter ou alcançar, é importante que vivas, experimentes e construas a vida que queres. A vida que te faz feliz. A vida que te deixa adormecer em paz. A vida que rima com os teus princípios e com a tua consciência. A vida que te foi dada e que pode ser preenchida com o que bem te apetecer. A vida que não pertence a mais ninguém.
Enquanto vivermos de aparências, de comparações e de falsas e irremediáveis expectativas, não me parece que estejamos a experimentar uma existência justa e condizente com aquilo que merecemos.
Às vezes também chove e há tempestade nas férias paradisíacas. Às vezes o emprego de sonho é um esqueleto de sentidos e de realização pessoal. Às vezes o carro é emprestado. Às vezes a casa está vazia. Queres uma vida bonita? Vive a tua.
“Posso dizer que não?”
Crónica de Novembro de 2022
Também se pode dizer que não? Que não fazemos? Que não vamos, que não queremos, que não temos tempo, que não estamos preparados ou que não temos vontade? Podemos dizer que não temos interesse? Que “obrigadinha, mas fica para depois”? Ou nesta sociedade quase perversa em que nos vemos mergulhados só há lugar para o sim? Para o “com certeza”; para o “vou já tratar disso”. Para o “conta comigo”.
Não te sentes cansado de fazer só o que te pedem? De só guardar vida para o que os outros precisam?
Vivemos com a ilusão de uma liberdade que não temos. Uma miragem bonita de uma vida em que mandamos nós, mas que é profundamente articulada por quem julga estar “acima” de nós. Somos reféns das vontades alheias e ignoramos aquilo de que precisamos para poder ficar bem em todas as fotografias. Deixamos de dormir. De comer. De beber quando temos sede. De respeitar as necessidades mais básicas. Sejam elas de carácter mais físico ou emocional/espiritual. Vale tudo mas parece-me que vivemos como se não valêssemos nada.
Vamos varrendo os nossos intuitos, desejos e intenções para debaixo do tapete e ficamos (de forma muito doente) à espera de fazer tudo o que houver para fazer.
A vida dedicada aos outros e ao bem comum não significa viver como se não existíssemos. Como se nem honrássemos a vida que nos foi dada.
Temos o direito de cuidar daquilo que somos. De dizer que não quando for demais. Quando nos ultrapassarem os limites ou quando nos desrespeitarem naquilo que é o mais sagrado da nossa essência como pessoas.
Viver é muito mais do que estudar, pagar contas, trabalhar e morrer. Para o caso de ainda não te teres apercebido, estás aqui para descobrir o teu propósito e, seja ele qual for, nunca estarás cá para ser menos do que muito feliz.
Por isso, quando puderes, diz que não fazes. Deixa para depois. Esquece as aparências. Esquece o que vão pensar. No final do dia é sempre sobre ti. Sobre os teus e sobre como a paz se pode construir a partir de se viver alinhado com o que se é.
“A ditadura do pensamento positivo”
Crónica de Outubro de 2022
Parece não haver espaço para pensar de outra forma que não seja a que rima com otimismo e positividade. Levaram-nos a crer que é errado chorar, que não devemos mostrar o que sentimos e que, se o fizermos, devemos mostrar sempre uma versão bonitinha, sublinhada daquele cor-de-rosa das nuvens que vemos nos desenhos animados.
No entanto, a vida não é nada disso. Não é uma paisagem bonitinha nem simples, na maioria das vezes. Tem escarpas capazes de rasgar joelhos ou almas, trilhos que nos fazem perder o rumo e o norte, armadilhas que nos fazem resvalar todas as certezas e ideias pré-concebidas. É nesses dias que não precisamos que nos digam coisas como:
“não fiques assim”
“olha para o lado bom de tudo isto”
“pensa positivo”
Pensar positivo quando o que se sente é, precisamente, negativo é mascarar com uma mentira aquilo que se diz e que se é. Pensar positivo como resposta a todos os problemas é, na realidade, criar mais um.
É preciso olhar com respeito para os nossos pensamentos negativos. Para o mau. Para a raiva que pode existir. Para a tristeza. Para o desânimo. E encontrar espaços sérios e seguros dentro de nós para lidar com isto. O pensamento positivo não é, de certeza, uma solução.
A ditadura do positivismo deixa-nos uma sensação de não pertencer, de não estar certo (ou válido) sentir o que sentimos. E essa sensação deixa marcas e feridas que podem, depois, apodrecer e ganhar formas demasiado feias. Que saibamos pensar positivo quando for tempo disso e que saibamos “pensar
negativo” quando sentirmos diferente do bom, da alegria e do que for feliz.
Há espaço para tudo o que és.
Há espaço para tudo o que somos.
Ou, pelo menos, devia haver.
Marta Arrais. Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de São João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique).