“Sociedade anónima dos que fazem a diferença”
Crónica de Junho de 2023
Há cerca de três meses que partiu o Sr. Comendador Rui Nabeiro. Portugal ajoelhou-se perante o seu desaparecimento. Caso raro de consensos, viveu a honra de ser homenageado tanto em vida como na morte. Alguns diziam mesmo que partiu um dos poucos que fazem a diferença. E fiquei a pensar: Será? Pessoalmente, tenho a certeza que não.
Não ponho em causa o percurso humano do Sr. Comendador. Graças a Deus por ele. Mas, serão assim tão poucos os que realmente fazem a diferença? Com tanta exposição pública, talvez. Na realidade do dia-a-dia, tenho sérias dúvidas.
Pela minha experiência de vida e de fé, corroboro inteiramente as palavras do sábio Gandalf, personagem icónica do universo de J. Tolkien: “Descobri que são as coisas pequenas, atos quotidianos de gente comum, que impedem a escuridão de avançar. Pequenos gestos de bondade e de amor”.
Acredito piamente que é o amor que, não só nos sustenta, como impede que o mundo não colapse. Acredito que o sacrifício de alguns é o benefício de muitos outros; que o “amor à camisola” de uns é a “conforto psicológico” de outros. Mas, não é esta a lógica do Amor? Fazer a minha parte, independentemente de quem não quer fazer a sua?
Creio que faz a diferença quem muitas vezes dá o que não tem, pela convicção de que o seu bem está intrinsecamente ligado ao bem do outro; pela convicção de que a sua vida só tem sentido se der sentido à vida do outro.
Faz a diferença quem habita os lugares sem se apropriar deles, pela certeza de que a sua presença é passageira e efémera, como a dos demais que o precederam e o hão de suceder.
Faz a diferença quem não cede – sempre – à preguiça, sobretudo quando está em causa o zelo pelos que lhe são próximos e/ou que o rodeiam. E, neste sentido, faz a diferença quem escolhe ser o protagonista da sua própria história e, com isso, quem sabe?, ajudar aqueles cujas circunstâncias não lhes permitem manifestar sequer a sua opinião.
Faz sempre a diferença quem se atreve a amar, mesmo quando o mundo só lhe oferece desamor. Simplesmente porque estar em paz não tem preço.
Dizem que um dos métodos mais eficazes para conhecermos uma pessoa é observá-la quando ela pensa que está sozinha. Vi uma vez um vídeo que abordava “o que todos fazemos quando ninguém nos está a ver”. Pois bem, para mim faz a diferença quem no silêncio, no escondido das aparências humanas, age com a mesma honra e solenidade de quem, visível ou não, se sente sempre perante a alteridade de si; seja essa alteridade o reflexo de si próprio ou do outro que lhe é/está próximo.
No fim das contas, faz a diferença quem se deixa guiar pela mão invisível de Deus. Ainda que Deus não seja o nome próprio do amor que escolhe viver a cada instante.
Muitos ainda não sabem que Deus é A Fonte do Amor. E isso, para quem só vê o que os olhos alcançam, faz toda a diferença.
P.S. – Faz (sempre) a diferença quem se importa.
“Rezo por ti!”
Crónica de Maio de 2023
Perde-se a conta, certamente, à quantidade de pessoas, de gerações, que já receberam de presente uma lembrança de Fátima com a inscrição: “Em Fátima rezei por ti!”
Invoco este exemplo a propósito de há dias me ter detido a meditar na expressão “rezo por ti”. A vida é uma sequência de pormenores para os quais só “olhamos e vemos” quando estamos preparados. E atenção! Quando “falo” em momento certo não me refiro apenas às coincidências felizes. Sou demasiado crente para me contentar com acasos. Refiro-me às “Deuscidências” que fazem brilhar a luz no devido tempo. É o que nos vale: Deus nunca se atrasa!
Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, invocamos a expressão “rezo por ti” para confortar alguém ou para lhe dar força? Quantas vezes a expressão nos é devolvida? “Rezo por ti!”
Pessoalmente, acho fascinante a força que estas pequenas e poucas palavras têm na hora de um daqueles apertos que a vida às vezes nos lança. Sejam eles de dor ou de alegria (as parturientes conseguem conjugar dor e alegria ao mesmo tempo!).
É válida, portanto, para crentes e não-crentes. Ou, se formos criteriosos, para crentes e supersticiosos, para crentes e “cristãos anónimos”, para crentes e “crentes em negação”. Estou aparentemente a ironizar, mas a verdade com que me deparo diariamente é que sempre que nos queremos fazer presentes e não sabemos como, o “rezo por ti” é aquela muleta ou almofada psicológica (vá, afetiva) que nos salva o desajeito para as palavras; que amortiza o sofrimento quase que impossível de assimilar.
Não deixa de ser reconfortante, também, quando os que nos são próximos nos pedem em jeito de socorro “reza por mim”. Não nos pode ser indiferente validarem-nos através de gesto tão nobre de amor. Experimento, muitas vezes, a certeza de, quando me dirigem o pedido, não terem a devida perceção do poder da oração. Ainda que pequena. Em parte, talvez, porque a maioria não vive consciente das suas crenças ou, pelo menos, não vive desperta para viver a sua fé a “tempo inteiro” (e que ao menos os mova a esperança).
Com esta observação não pretendo, de todo, julgar alguém. Considero apenas que, tal situação, é talvez reflexo de uma espiritualidade que, para algumas pessoas, permanece latente, escondida e silenciosa, só consentida intermitentemente. Faz-me lembrar aquela anedota de que “no céu, dentro de um avião, todos somos crentes!”
“Rezo por ti!” Rezo pela minha família, pelos meus amigos, pela Igreja, pelos mais pobres, pelos mais vulneráveis, pelos meus inimigos (eu sou a minha primeira inimiga).
“Rezo por ti!”, porque rezar “por ti!” é muitas vezes a única “arma” de amor que tenho “à mão”; é muitas vezes a única chama que posso acender “por ti!” (e por mim).
“Quando não souberes como ajudar uma pessoa, reza por ela”, li uma vez algures.
P.S. – Eu também rezo por mim.
“Uma História juntos”
Crónica de Abril de 2023
Porque nos custa tanto pôr em prática uns com os outros, a gratuidade do amor que, na oração diária, experimentamos com o Senhor? Todos nós precisamos de um sentido para a vida. Precisamos de um objetivo que justifique as nossas ações para, consequentemente, alcançarmos legitimidade perante a obra que, com todo o nosso ser, nos propomos empreender.
Trata-se de uma caminhada feita de encontros pontuais e outros continuados com pessoas que nos ajudam a crescer. Com as que convivemos com maior frequência, vamos naturalmente construindo uma história juntos. Acompanhamo-nos. As que passam por instantes ou as que chegam sem licença e pré-aviso são frequentemente rejeitadas ou tratadas à distância por parecer quererem ocupar o lugar de outras que tanto trabalho deu a conquistar e a criar assento no auditório do nosso coração.
Como se não houvesse espaço para todas! Ou, a haver, tal nos obrigue a um esforço defraudante de ter de repartir equitativamente o nosso amor por todos, porque o nosso conceito de amor preferencial traduz-se numa efetiva “compra” de afetos. É a via mais fácil para ficarmos todos contentes.
Por efeito, podemos reconhecer que Deus mais facilmente se relaciona com todos e a todos ama, porque a todos conhece. Com todos tem “uma história juntos”. Sabe com o que pode e não pode contar. Foi afinal Ele que nos criou. Conhece-nos desde “as entranhas”. Já nós, por não sabermos o que esperar, aconchegamo-nos nos circuitos fechados do nosso ser limitado.
Regemo-nos pelo convencional porque o radical é para os loucos!
O desconhecido incomoda-nos, pelo confronto daquilo que não podemos controlar: o impacto das nossas ações nos outros. E deles em nós.
No livro da nossa vida, quantas páginas temos por acabar de escrever? Quantas “histórias juntos” estão pendentes? E aquelas que apagámos com o corretor e depois, por deixarmos a secar, não voltámos a reescrever? Vale a pena tentar? Se for para «amar e mais amar» (Sta. Rafaela Maria), então vale sempre!
“A escolha do amor”
Crónica de Março de 2023
Fechar a porta à presença de Deus na nossa vida é consentir livre e conscientemente que a nossa sede de infinito penhore a verdadeira felicidade para a qual fomos criados. É um ato de fraqueza que a maior parte das vezes perpetuamos por achar que é tarde demais para nos aventurarmos em tal demanda. E isso prevalece porque nos prendemos demasiado aos erros do passado.
Construir o futuro no momento presente requer uma «determinada determinação», como dizia Santa Teresa d’Ávila; que recomecemos todos os dias a vontade de querer continuar. E recomeçar todos os dias não é de todo mero exercício de repetição. Não somos hoje as mesmas pessoas que éramos ontem. Daí que, a cada dia, nunca recomeçamos exatamente no mesmo ponto do dia anterior.
«Mudamos por exercício e não apenas por reflexão», observou uma vez o padre Nuno Tovar de Lemos, sj. Não é a santidade este exercício contínuo de sermos cristãos? Quanto tempo levamos a exercitar os pulmões para conseguirmos suster a respiração debaixo de água durante 25 metros? E 50 metros? Quantas horas/dias precisamos de ensaiar no piano uma partitura de Mozart ou Beethoven para a sabermos tocar quase de “olhos fechados”? Quantos meses de treino para uma maratona? Que sacrifícios, que privações? Que ganhos?
Sabemos que estamos a amar quando percebemos que temos a perder a possibilidade de alcançarmos o melhor de nós mesmos. É um salto no escuro, é certo. Não é possível amar sem sofrer, sem nos ferirmos, sem nos ferirem. Escolher amar é escolher dizer ‘Sim’ nos momentos em que dói mais dizê-lo. Não porque se quer sofrer. Mas porque se escolhe aceitar o sofrimento – inevitável – como quem escolhe atravessar um quarto escuro para chegar a uma varanda cheia de luz. Não somos pretos nem brancos. Somos cinzentos. Somos carne e espírito. Somos trevas e luz, tudo farinha no mesmo saco. Como peneirar? Ama. Será que o preço do medo cobre a acidez do arrependimento de não ter tentado?
“A pedagogia do deserto”
Crónica de Fevereiro de 2023
«Naqueles dias, o povo de Israel impacientou-se e falou contra Deus e contra Moisés: ‘Porque nos fizeste sair do Egipto, para morrermos neste deserto? Aqui não há pão nem água e já nos causa fastio este alimento miserável’» (Nm 21, 4b-9).
A questão da liberdade dá trabalho: no Egipto éramos escravos, mas comíamos bem; no deserto somos livres, mas passamos fome.
Quantas vezes nos impacientamos com Deus quando sentimos que a nossa vida está estagnada ou metida numa grande embrulhada? Quantas vezes “amaldiçoamos” a solidão e o vazio que nos impedem de nos sentirmos plenos na vida e no amor?
(Nota: A solidão habitada também faz parte do pacote completo das pessoas felizes!)
A pedagogia do deserto não assenta apenas na lógica da purificação. Não está apenas em causa a nossa liberdade perante aquilo que nos prende, que nos pesa e que nos faz mal. Está também em jogo a maturação tanto do que somos como do que queremos.
Dizem que os melhores cozinhados são os que requerem muito tempo em lume brando. Pois bem, Deus não nos leva ao deserto apenas para aprendermos a “depender” Dele. O deserto não é só a cura e a purificação das feridas. É também a purificação da vontade. É aceitar colocar em lume brando o que há de mais íntimo e intrínseco em nós para que, conscientes da nossa verdade, possamos deixar vir ao de cima a melhor versão de nós mesmos. A melhor versão para a qual Ele nos criou.
A melhor massa é a que fica a levedar. A certeza de que o meu deserto é fruto do Novo Testamento é que, ao contrário do que aconteceu no Antigo com o episódio das serpentes, no meu deserto Deus revela-se não menos do que um Pai Misericordioso, não menos do que um Pai paciente, presente, que perdoa, que não desiste, que mais não é senão Amor.
E o que torna o meu deserto melhor (mais suportável) que o do povo de Israel não é porque Deus me ame mais do que amou a ele; mas porque, no meu deserto, mais do que Moisés, tenho Jesus; mais do que um profeta, tenho “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Eu bendigo o meu deserto porque, sendo herdeira do deserto de Israel, sou, acima de tudo, herdeira do amor de Jesus. E, para encontrar o Oásis, isso é mais do que suficiente.
“Começar o que não se acaba”
Crónica de Janeiro de 2023
Ser instrumento de Deus é não viver para “ver” os resultados do nosso trabalho. É não alimentar a ilusão de que somos o Alfa e o Ómega do que seja, de quem for.
Nesta nova vida de amor, fraterna e hospitaleira, que abraçamos quando pegamos o Deus Menino no colo, somos não mais que arautos de uma história que já existia antes e continuará a existir depois da nossa passagem por estas páginas, em que somos personagens, mas não o seu Autor.
Se não, vejamos:
São José criou e educou Jesus. Mas não viveu para O ver anunciar a Boa Nova do Reino.
São João Baptista, o maior entre os nascidos de mulher, segundo o próprio Jesus, também morreu antes de percorrer o Caminho que ajudou a preparar. A Bíblia faz referência dele em apenas cinco ou seis frases, mas é hoje dos santos mais populares em todo o mundo.
São João da Cruz morreu antes de concluir a reforma da Ordem Carmelita. É hoje dos grandes doutores da Igreja.
Antoni Gaudí nunca viveria o suficiente para assistir à conclusão da Catedral da Sagrada Família. E mesmo ciente disso, não deixou, no entanto, de a projetar.
São João de Deus, tido como louco por muitos dos seus contemporâneos, é pai de uma obra hoje espalhada por todo o mundo.
A Palavra de Deus (Bíblia) chegou até nós porque “de geração e geração” foi sendo transmitida, nunca contida nem sufocada.
Quantos Santos temos hoje na Igreja que viveram uma vida de entrega ao silêncio laborioso e que, só depois da sua morte, ao acedermos aos seus escritos, no fundo, aos seus testamentos espirituais, é que nos demos/damos conta dos tesouros que “viviam ao nosso lado”?
Começar algo que sabemos de antemão que não vamos ser nós a acabar, não é uma questão de tecer uma vida incompleta. Fazer uma manta de um tecido só ou com vários retalhos tem exatamente o mesmo valor. Uma ou outra encontrarão utilidade. Serão aconchego para alguém.
Começar o que sabemos de antemão que não vamos acabar, é não só um ato de generosidade, de despojamento, como um ulterior exercício de humildade, perante Deus e a Sua obra da Criação.
Somos tecelões de uma Rede invisível de Amor. Instrumentos que tocam uma Partitura que tem um só Maestro. Somos o “meio” de algo que nos excede e ultrapassa. Mas, mais que isso, somos sem dúvida o princípio e o meio de tudo o quanto fazemos por e com Amor. O fim há-de ser sempre o Eterno Bem, que é Deus. Só assim se entende sermos os “fins” uns dos outros, na medida em que me devo ao próximo, para o levar comigo a Deus.
Umas vezes somos comboio, outras passageiros. Outras ainda, estação. Mas nunca passaremos de uma Rota num Mapa que não tem início nem fim. Pelo menos, não definidos por nós.
Abrir mão e entregar, não possuir mas potenciar… Quanta beleza! Fazendo eco de São Gregório de Nissa, aquele que ascende nunca deixa de caminhar de início em início; nunca se acaba de começar.
“A felicidade também exige discernimento”
Crónica de Dezembro de 2022
A esperança da felicidade, daquela que só o amor nos dá, será talvez o que nos move. Ainda que não saibamos de antemão o que, na prática, procuramos. O que, na teoria, projetamos. Mas, a felicidade… arrisco escrever, tem muito que se lhe diga.
Não creio que seja “apenas” um estado permanente, ou recorrente, de alegria. Ou de paz. Ou de paz e alegria. A felicidade não chega por geração espontânea, por muitas vezes que se apresente assim na nossa vida. Há que ter em conta que a “sorte” e/ou o “destino”, para terem uma palavra a dizer na nossa história é porque, quase sempre, já tiveram muitas palavras ditas nas histórias de muitos outros antes de nós.
É como que um ciclo vicioso, este de nos contagiarmos com o que nos faz bem. No entanto… A felicidade também nos pode esmagar. Sim, por vezes, custa arranjar espaço para encaixá-la. Sobretudo, quando ela irrompe na nossa vida quando menos esperamos, de quem menos expectamos.
A felicidade também nos pode esmagar quando arriscamos mesmo naquilo que já sabemos que nos faz bem. Porque nos supera. Porque nos superamos (porque não?!). É uma construção. Está no meio, bem mais do que no fim. Está na relação, bem mais do que na evasão daquilo que nos fere.
A felicidade também pode ser inebriante. E alienante. Uma fase de contentamento ou um momento extasiante, podem induzir-nos à certeza falaciosa de que doravante tudo será fácil, tudo será certo, sem erros nem constrangimentos.
A felicidade também nos dói quando esbarramos num sonho adiado e o nosso coração, impávido, tem dificuldade em assimilar a – nova – realidade. Ver a promessa cumprida também dói, porque nos confronta com a descrença que fomos experimentando no caminho, embora tenha sido a crença que nos fez chegar até “aqui”. Não é uma dor de pele, nem de coração; é mais uma dor de orgulho de filho pródigo, que depois de tantas provas dadas, ainda se espanta com a gratuidade incondicional do amor do Pai. E ainda bem. «Aonde iria eu, sem Ti, Senhor» …
A felicidade também pode ser serena, pacífica, como uma brisa suave num pôr-do-sol que nos abraça o cansaço do dia e nos sussurra ao ouvido do coração que amanhã o sol volta – sempre – para iluminar até mesmo as nuvens cinzentas da nossa desolação. É por tudo isto e muito mais, que também exige discernimento. Deixar a felicidade fazer casa no nosso coração, ocupar o espaço que não queríamos ou que não pensávamos ter para dar, mais do que um ato de coragem, é um ato de amor. Próprio.
“A admiração de si mesmo”
Crónica de Novembro de 2022
«As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas, e, no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem» (Santo Agostinho).
Sabemos – creio que empiricamente – que qualquer direção que tomamos no nosso andar, encontramos sempre um caminho. E o mais fascinante é que na nossa caminhada pelo tempo, há sempre uma nova rota a ser traçada (nunca é tarde, certo?). Os nossos passos, ao caminharmos, alguns levam-nos a sítios e outros a pessoas, e outros ainda a sítios e pessoas. Em qualquer dos casos, o caminho conduz-nos sempre ao encontro. Só que há encontros e encontros. Estranho, não é?
Mas, com tantos passos e caminhada, afinal ao que vamos? O que, de facto, procuramos? Damo-nos conta do que nos move ou gastamos o saldo da nossa ampulheta a navegarmos ao sabor do vento? De remos guardados, irmos sem destino, expectantes com o inesperado e prontos a enfrentar o desconhecido, ou certos de que controlamos todas as variáveis dos caprichos do tempo e do espaço?
São duas opções. Sim, por um lado, gostamos de adrenalina. Caminhamos, chegamos, olhamos à volta e prosseguimos. Estabelecemos nova etapa. Voltamos a caminhar, a chegar, a olhar e a prosseguir. E lá vem outra nova rota. Sempre com adrenalina, porque os horizontes nunca se esgotam. E assim prosseguimos. O que nos dá sentido ao caminho? A adrenalina? Os horizontes? No fim da linha, o que levamos?
Caminhos e encontros fortuitos e fugazes, porque parámos, olhámos, mas não vimos, não ficámos. Encontrámos sítios e pessoas, vimo-los, vimo-las, tocámo-los, tocámo-las, mas não os/as sentimos, não os/as conhecemos e verdadeiramente não os/as encontrámos, porque verdadeiramente não parámos.
Continuámos. Novos sítios e novas pessoas alcançámos. Sofregamente andámos, caminhámos, parámos, mas não ficámos. Mergulhámos numa espiral de “check-lists” e “to-do lists” e, por isso, só passámos, só andámos. E no fim o que levámos? Uma coleção de flashes, repetidos e gravados na nossa memória. Não guardámos os cheiros, os sabores, os barulhos, o silêncio.
Alguns caminhos levam-nos a sítios e outros a pessoas, e outros ainda a sítios e pessoas. Uns despertam-nos os sentidos e outros assaltam-nos a memória, e que levámos?
Depois há a outra opção. A de passar, parar, ficar, olhar e ver. Encontrar e conhecer. Mas só porque se parou e ficou. E… finalmente, a admiração! Creio que o verdadeiro encontro, aquele que não fica só na memória, mas também – mais do que tudo – no coração, só acontece perante o inesperado assombro da admiração.
Receio que qualquer que seja o ponto de partida, a nossa caminhada só terá sentido se o ponto de chegada estiver carregado de amor. Um amor que não foi ganho com o cruzar da meta, pelo contrário, começou a ser desenhado com o primeiro (incerto e inseguro) passo. Foi uma construção, o caminho que nos levou à meta. Recheado de sítios e pessoas. De criação e de humanidade. Não é a nossa casa e a nossa família o melhor tempo e lugar de nós mesmos?
«Precisamos uns dos outros para sermos nós mesmos», também dizia St. Agostinho. Desconfio, por isso, que a melhor admiração que podemos receber de nós é o amor que damos e recebemos. É a melhor e mais eficaz equação matemática que alguma vez faremos, pois só há amor quando há encontro, e admiração. De coração.
“Uma estranha a caminho”
Crónica de Outubro de 2022
Gosto de uma vez por ano fazer uma peregrinação. Não me importa se longa ou curta; o meu propósito, para além do gosto em caminhar, é marchar com os pés e o coração em uníssono com Jesus, a maior parte das vezes através da Sua/nossa Mãe.
Já fiz a “grande” peregrinação a Fátima, a partir da minha terra, já fiz um dos caminhos de Santiago e, mais amiúde, costumo percorrer – sobretudo pelo 13 de outubro – cerca de 30 kms, entre Torres Novas e Fátima, por exemplo. Já fui de dia e de noite, já fui sozinha e acompanhada. E em ambas as experiências – só ou em grupo – emociona-me sempre a solidariedade manifestada, das mais diversas formas, ao longo do caminho.
Sempre que caminhamos em grupo, de certa forma, partilhamos a cruz, padecemos todos mais ou menos das mesmas penas (pernas doridas, bolhas nos pés, o desafio psicológico de nos superarmos…). Quando o cansaço teima em absorver-nos, especialmente para aqueles menos habituados a caminhar, um ombro amigo – aqui bem literal – é fundamental para conseguirmos cumprir o objetivo: chegar.
E, sempre que nos apresentamos aos pés da Mãe, somos tomados por uma comoção que resume e dá sentido a todo o esforço. As lágrimas revestem-se de sabor a vitória, não tanto por termos chegado – que também importa – mas, mais do que isso, por termos construído um caminho, juntos. Juntos com Deus, connosco e com os outros; aqueles “outros” que tantas vezes partem de lugares diferentes, mas cuja meta nos faz cruzar as vidas, mesmo antes de a termos alcançado.
É um caminho feito de «alegrias e dores, penas e trabalhos», de partilha, de convívio, de amizade, de solidariedade… Cada olhar espelha o mesmo sentimento: gratidão. Porque juntos sofremos, vencemos e descobrimos e/ou cimentámos a certeza de que Deus não é senão Amor. Ele esteve no princípio da caminhada, quando no mais íntimo de nós nos chamou a ela; esteve durante a caminhada, sustendo-nos e ajudando-nos a não desistir, por mais vezes que caíssemos; e esteve no fim, quando na meta nos recebe de braços abertos sem precisar de nos dirigir uma palavra. A Sua presença basta.
A experiência de caminhar sozinha, embora menos calorosa, também não deixa de ser enriquecedora. E talvez aqui a oração seja mais preponderante. Psicologicamente é muito mais exigente, claro. A forma como encaramos os primeiros passos diria que é fundamental. Quer conheçamos ou não o caminho. No meu caso, das vezes que optei por arriscar ir sozinha deveu-se ao facto de já conhecer o trajeto. E se, na hora de decidir, isso nos conforta e dá alguma segurança, a verdade é que quando começamos a “viagem” e mentalmente revemos o que nos espera… o ânimo fraqueja. Como superamos? Bem, diria que é uma questão de fé (e meia dose de loucura!).
Na caminhada que fiz este ano, logo no início fui ultrapassada por dois pequenos grupos de ciclistas. Praticamente todos me cumprimentaram e votaram uma palavra de alento. Eles iam acompanhados e de bicicleta; eu ia sozinha e a pé. Vê-los distanciarem-se de mim ajudou a “correr atrás”. Depois, também há sempre um ou outro carro que, quando passa por nós, buzina ou abranda e abre a janela para gritar “Força!”.
Há um reconhecimento e respeito subentendidos, arriscaria que sagrados, que me impressiona: mesmo quem certamente não é crente, não deixa de apoiar. E faz-me pensar nas razões que validam a “fama” das peregrinações a Fátima e a Santiago de Compostela. Nas primeiras, pedimos ajuda à Mãe, e muitas vezes pedimo-lo por outros. Nas segundas, partimos essencialmente em busca de nós; guiados por Deus, pelo apóstolo Tiago, por Maria… Nem sempre o sabemos. Mas partimos. E chegamos, qualquer que seja a meta. Deus faz-se sempre presente.
Ainda sobre o caminhar sozinha… O provérbio chinês (?) de que «sozinhos vamos mais rápido, mas juntos vamos mais longe» tem o seu fundamento. É um facto. Sozinhos vamos mais depressa, porque também conscientes de que estamos mais expostos ao perigo. Psicologicamente é mais pesado e desafiante, porque é mais fácil concentrarmo-nos só em nós, nas dificuldades que enfrentamos e como as ultrapassamos (por muito que tentemos fazer o caminho com Deus). Mas pela minha experiência, nada compensa o amor que damos e recebemos quando caminhamos acompanhados. Juntos somos mais fortes, porque temos alguém por quem e a quem dar a vida; somos mais fortes, porque é mais fácil sacrificarmo-nos pelos outros. É isso que nos edifica e acrescenta valor.
Só o amor nos justifica. E é esta experiência de reciprocidade que me faz viver a certeza de que quem aceita percorrer os caminhos de Deus nunca terá uma vida “normal”. E é isso que nos torna “estranhos”.
Elisabete Inverno. Natural de Castelo de Vide, já viveu em Lisboa, mas o coração devolveu-a ao Alentejo. É formada em Serviço Social e em Ciências Religiosas, estando presentemente dedicada à lecionação da EMRC na sua diocese, Portalegre-Castelo Branco. Faz parte da Juventude Hospitaleira, carisma que abraçou ao trabalhar com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus.
Como qualquer pessoa que nasceu para jamais morrer, gosta de estar em família e entre amigos, de ler, ouvir música, dançar, viajar, gosta de desporto, de arte, de natureza e, sobretudo, de nela caminhar. Mas, mais do que tudo, gosta (embora, às vezes – muitas – reclame) do desafio de diariamente ser cristã.