David Barbas

“O Tempo de um abraço”

Crónica de Março de 2023

 «Irmãos, fazei o bem a vós mesmos».

 «Irmãos, fazei o bem a vós mesmos».  [1]

Eis que no frio da noite, ou no calor do dia, uma voz clama no deserto das vidas. É João. João Cidade. João dos Homens. E, sobretudo, João de Deus.

Clama, apela, aos corações, como outrora o Rei David nos seus salmos: “Examinai-me, ó Deus, e conhece o meu coração”. [2]

João apela aos corações. João sabe que “toda a vida é um diálogo ininterrupto da criatura com Deus”. [3]. E ele encontra Deus naqueles com quem se cruza.

É fácil encontrar João pelas ruas, de alcofa ao ombro, panelas na mão, apelando à Caridade, essa jóia de todo o cristão.

Mas, também não é difícil encontra-lo, braços abertos, sorriso no rosto, pronto a abraçar a todos, sobretudo aqueles que ninguém quer tocar. Mas, ele quer. Ele Deseja-o! É João…

João sabe o valor de um abraço. Ele sabe que o abraço não é um gesto, mas um lugar. O lugar do encontro, com o Outro, consigo mesmo, com Deus… É o lugar de “uma longa conversa que acontece sem palavras” [4]. É o lugar onde “tudo o que tem de ser dito se soletra no silêncio” [5].

 No braço esquerdo o passado. No braço direito o futuro. Neste cruzar de ambos o tempo presente, onde “sem defesas, um coração se coloca à escuta de outro coração” [6].

Parámos “o tempo pelo tempo de um abraço” [7].
João pára o tempo. Não para o estagnar. Não… mas, pára-o na certeza do avanço. Porque João sabe que o abraço é um Kayrós. Ele sabe-o e quer que os outros o saibam, sentindo-o… Não por palavras. Mas, por gestos amorosos.

No princípio era o Verbo” [8]. O Verbo que é Amor.
No princípio de João é o abraço. O abraço do Verbo, e ao Verbo.
O abraço que acolhe, que preocupa, que aceita, que cuida… que ama!

“Ocupava-se todo o dia em diversas obras de Caridade, e à noite, quando regressava a casa, por cansado que viesse, nunca se recolhia sem primeiro visitar todos os enfermos, um por um…(e) confortava-os espiritual e corporalmente” [9].

É João… é este Homem do tempo. O Homem do tempo presente. Do agora.
João nunca fica no passado. João caminha para o futuro. Mas, sempre no presente. É o Homem do hoje. Do hoje que é sempre!
O João do século XVI é o mesmo João do século XXI. Porque João é daqueles “homens, que debaixo da aparência humilde, são iguais a Anjos” [10]. É intemporal. Como é intemporal o exemplo que nos deixa, quando cuida, quando socorre, quando pede, e, quando dá. Sobretudo quando dá… quando se dá.
Quando num abraço dá nova vida. Quando num abraço restitui a dignidade que outros roubaram. Quando num abraço dá saúde. Quando num abraço é capaz de parar o tempo e Amar!

 Naquela noite de 8 de Março de 1550 “João de Deus não morrera. Cedera o corpo mísero, mas não se cansara a alma” [11].

S. João de Deus ainda está vivo!”[12].

 E, neste dia que é seu, calo as minhas palavras para que ele fale:

Daqui vos deito a minha bênção, ainda que indigno pecador. (…) A bênção de Deus Pai, o Amor do Filho e a graça do Espírito Santo estejam sempre convosco, com todos e comigo.
Amém Jesus
” [13].

“(C)orações”

Crónica de Fevereiro de 2023

O mês de Fevereiro é, por tradição, um mês do coração. Ou não fosse o mês do dia dos namorados.

É engraçada a coincidência, (se é que elas existem), de este mês anteceder o de Março. Se um é o mês do coração, o outro é o da Hospitalidade, por inerência a S. João de Deus.

 Quando a nossa mente escuta o termo «coração», viaja quase de imediato para as mais diversas paixões humanas.

O coração quase que se torna sinónimo de sentimento. De sentimentalismo.

Esquecemo-nos com frequência que o coração não é um sentimento, nem sequer um mero órgão do corpo humano. O coração é um lugar. E compreendemo-lo facilmente no contexto bíblico.

Como diz Sto. Agostinho no seu comentário ao Salmo 33: “Felizes aqueles que entram com alegria no seu coração”.

Falamos muito do coração. Usamo-lo metaforicamente, até simbolicamente, para retratar o Amor. Mas temos de lá entrar. Caso não o façamos nunca conheceremos aquele lugar. Lugar de encontro. Encontro connosco próprios. E aí é onde dói.

Encontro com o meu próximo. Encontro com Deus.

Todos estes três encontros podem ser difíceis. Podem mesmo nunca se dar, se não passarmos o limiar da entrada.

Porque precisamos de penetrar neste espaço interior, por vezes tão doloroso? É muito simples: porque é no interior que conseguiremos concretizar sempre o acto mais sublime de todos. E esse acto é o de Amar. Amar-me. Amar o próximo. Amar a Deus.

Só passando a soleira…

Só parando…

Só fazendo silêncio!

No coração da tarde acendo o poema:
no seu pulsar vermelho
as folhar repetem ao ouvido
a nomeação serena do Amor
”. (Nuno Higino)

“Almas inquietas e atentas”

Crónica de Janeiro de 2023

Uns magos, atentos aos céus, perceberam o significado de um luzeiro celeste.

Eram homens. Homens do seu tempo.
Porque viram o que mais ninguém vira?  Intuição interior? Predisposição? Talvez.
Atenção? contemplação? Certamente!

Eram homens atentos aos sinais de Deus, nas suas vidas, e, no todo das vidas que é a própria Criação.

Viram uma estrela a anos luz de distância e, compreenderam a sua diferença.

Passados mais de 2 mil anos, não é a Humanidade capaz de ver aquele, aquela, em quem tropeça…

Diz-nos Santo Agostinho que “no dia que se chama Natal viram-n’O os pastores judeus; no dia de hoje, que se chama propriamente Epifania (quer dizer, manifestação), adoraram-n’O os Magos pagãos. Aqueles receberam o anúncio dos Anjos; estes, de uma estrela”. (Sermão 204)

E a nós? Quem nos anuncia o Messias? Que Messias é que anunciamos?

Apetece-nos muitas vezes dizer como Tobias: “Senhor, olha-me e tem piedade de mim…” (Tb  3, 15).

Envia-me um sinalzinho… um anjo! Ou uma estrela!

Deus ouve-nos com este discurso e, certamente, esboçará um sorriso.

Não percebemos nada.

Queremos anjos celestes, quando tropeçamos, e não vemos os terrestres. Anjo significa mensageiro. Quantos irmãos e irmãs nossos, não são portadores da mensagem de Deus?

Já dizia S. João que “aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” ( 1 Jo 4, 20).

Como queremos ver anjos do Céu se não prestamos sequer atenção aos da terra?

Quanto a estrelas… bem, aí somos uns “experts”. Trocamos astronomia por astrologia e está arrumado. Horóscopos é connosco!

Mas, até por aí, longe vai o tempo em que na noite estrelada, a Humanidade sabia identificar os signos nas constelações…
É mais fácil hoje ler nas revistas umas coisas daí tiradas por alguns.

É mais fácil ficarmos por uma visão horizontal do que por uma vertical.

Custa-nos menos olhar para baixo do que para cima!

Ler as legendas em vez de interpretar… porquê?

Porque já não conseguimos contemplar. Já não o sabemos fazer…

Precisamos de parar…

 Mudou o ano. Renovaram-se votos e fizeram-se novos. E depois?

Vimos a estrela no Oriente? Já somos capazes de ver, ouvir, cheirar, tocar, os anjos do dia a dia?

A manifestação de Deus é constante! Nós é que não sabemos e até por vezes não queremos ver.

Incomoda. Desacomoda…

E isso é bom! Porque rompe com a nossa padronização social actual.

Deus, quando se manifesta, desinquieta sempre.

Neste 2023 sejamos verdadeiras almas inquietas… inquietas por Amor! E… “Não se esqueçam da Hospitalidade. Foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos.” (Hb 13, 2)

“Na voz do Silêncio… silenciei-me!”

Crónica de Dezembro de 2022

Sentei-me no chão do coro alto. À altura do meu olhar, imponente, mas simples e humilde, como outrora, e sempre, encontrei uns olhos postos em mim.

Uma mulher, bela, radiante, carismática, silenciosa, contemplativa… rodeada de anjos.

Era ela, a “Virgem Sempre Intacta”. Aquela mulher que ao longo dos séculos, dos milénios, chegou, tocou, e guiou a tantos, e tantas.

Ela, aquela Mãe que tudo guardava, e guarda, no coração silencioso. Não silencioso de indiferente. Silencioso de contemplativo; de quem guarda tudo, repassa e medita tudo.

Ela, a Mãe daquele jovem de Nazaré, Filho de Deus, que de tão oblativo no-la deu como nossa mãe também.

Ali estava ela, naquela imagem, tão bela, cara a cara comigo.

 Na igreja não se encontrava mais ninguém naquele momento. Apenas nós os três. Eu, Ela e o Seu Filho no sacrário. E ela, ali, encarando-me.

Confesso que se fez silêncio. Um silêncio diferente. E, ali, sentado no chão, assim permaneci. Em silêncio.

Não sabia o que dizer.

A dado momento recordei-me de um livro de Inácio de Larrañaga que lera, e que falava precisamente do silêncio de Maria.
Dali viajei para a Sagrada Escritura, e apercebei-me de que ela nunca fora mulher de grandes discursos. Talvez o seu maior discurso tenha sido o “Magnificat”.

Eu penso, e chego à conclusão de que não.

Ela disse mais, e falou mais alto do que o mundo inteiro, quando pronunciou aquele “Faça-se…

Aquele sim, foi a maior argumentação de Maria.

Ela disse “SIM”. E ali o mundo mudou.

O Anjo faz-lhe o anúncio, e ela, talvez a meia voz, diz lhe “Sim”, “Faça-se”.  E naquele momento aquele Sim foi um grito que ecoou, que fez estremecer, toda a Criação.

 Anos mais tarde iremos encontra-la nas ruas, a contemplar o seu Filho, o seu amado Filho, a arrastar-se, a ser humilhado e maltratado.

Iremos encontrá-la aos pés da Cruz, assistindo à morte do seu Filho… aquele Filho fruto das suas entranhas… o Filho que ela tanto amava… E fechando os olhos somos ainda hoje capazes de ouvir o seu silêncio gritante de dor, devastador…

 Quando O descem e lho entregam, naquela célebre, mas dolorosa cena que hoje apelidamos de “Pietá”, lá a vemos, com o Filho nos seus braços, tal como em criança… morto. Toda ela era dor, lágrimas e… silêncio…

Ao longo da história tentou-se reproduzir este momento, e sempre que isso acontece há um foco que sempre se realça: o olhar.

O olhar que nos focando, nos fala no silêncio… não são precisas palavras audíveis…

Vede se há dor maior do que a minha dor…

Era esse olhar que me encarava, ali, no silêncio daquela igreja. Ela queria falar-me.

Eu deixei-me ficar. Eu, Ela e Ele. E ela falou-me.

Disse-me o que eu não sabia que precisava de ouvir. Mas ela, ela sim, sabia-o.

 Ergui-me e preparava-me para sair genufletindo, quando voltei o olhar para Ele. No meu interior senti que Ele me questionava: “ouviste-a? Eu assino por baixo!”. Acho que sorri. Se não com os lábios, pelo menos interiormente.

 A Virgem Sempre Intacta, não é intocável. Ela toca-nos. No corpo, e na alma.

Mas, para isso ensina-nos a silenciar. Porque, afinal o silêncio é a linguagem própria daqueles, e daquelas, que amam!

“O Deus mudo”

Crónica de Novembro de 2022

 «Fala, Senhor».

Apenas silêncio…

A quantos de nós já não aconteceu isto… Pedir, exigir, a Deus que se manifeste, que nos fale. Ele, que não faz conversa de circunstância, deixa-nos irritados com aquele Seu silêncio.

Estava um dia chuvoso. Tão, ou mais chuvoso, do que o meu interior. Pedi-Lhe que me falasse. Ecoou um trovão. Com medo fugi para dentro de casa.

  Outro dia ia no metro, e entre a multidão que me deixava isolado, mentalmente, pedia-Lhe que me falasse.
Ao descer na estação, logo ali na esquina, uma mulher de filho nos braços me estendia a mão pedindo esmola. Absorto no meu monólogo com Deus nem a vi.

  O dia avançava e, já irritado, pelo Seu silêncio perene, troquei de rua, indo por uma mais escura, porém menos movimentada. Adiante de mim, no passeio, uma idosa, talvez octogenária, empurrava o seu carrinho de compras, lentamente, e com dificuldade. Ao ultrapassá-la nem escutei o «Boa tarde» que me dirigiu.

Não era frequentador daquelas ruas. Não conhecia muito da área. Caminhando naquele entardecer, deparei-me com uma igreja de portas escancaradas. Mesmo de fora era capaz de ver o Ostensório sobre o altar.
Desafiador, entrei.
Sentei-me nos últimos bancos e, ali, exigi que me falasse. Tal como havia acontecido no resto do dia, a única resposta que obtive foi o silêncio. Silêncio, que naquela igreja vazia se tornava ainda mais pesado.

  Um sacerdote, saindo nem sei de onde, abeirou-se, colocou-me a mão no ombro e, chamando-me a atenção, perguntou-me se estava ali para me confessar. A pergunta soou-me quase como se Ele estivesse a fazer troça de mim…
Eu havia procurado Deus ao longo de todo o santo dia, Ele não se manifestou; nem uma só palavra! E agora ainda queriam que me confessasse. Eu… o ofendido!

Entre dentes, muito a custo, respondi que não. E o sacerdote, sem insistir, saiu pelo lugar por onde havia chegado.

  Estava ali novamente sozinho naquela imensa nave de igreja.

O silêncio, as paredes, as sombras… tudo me sufocava.

Levantei-me, e virei costas para sair, quando uma voz me chama. Volto-me, mas não vejo ninguém. Apenas aquele Ostensório sobre o altar. Não podia ser…

«Não querias que te falasse?»

Era mesmo. A voz vinha dali!

Aproximei-me e ajoelhei-me nos bancos da frente.

«Sim, Senhor. Todo o dia o desejei e Te pedi!»

«Eu em todo o dia estive diante de ti. Estendi-te a mão. Saudei-te. Perguntei-te se querias falar comigo em particular como dois amigos. E tu simplesmente recusaste-Me…»

Compreendendo cá dentro as Suas palavras, perguntei-Lhe envergonhado:

«O que devo fazer?»

«Abre os teus olhos. Toca a Minha carne. Sente o meu cheiro. E aí escutarás a Minha voz. Não acuses de mudo quem te Ama, quando tu próprio ages como surdo…»

“O que farás com a tua tela?”

Crónica de Outubro de 2022

 Estava a chover. Parei à porta para contemplar a paisagem, e, lembrei-me de Voltaire, e da sua célebre frase: “Não posso imaginar que este relógio exista e não haja um relojoeiro”. O vento soprava agreste, fazendo com que as folhas das árvores batessem cadenciadas. Harmoniosamente cadenciadas.
Mas o que me chamou a atenção foram as folhas. Não apenas as das árvores. Porque nem só as árvores possuem folhas. Foram as folhas das videiras. As folhas das videiras… agora em tons de amarelo, vermelho, castanho… via-as bater, ondeando ao ritmo do vento e, parado, parei a contemplar todo aquele quadro. Uma palete de cores, variada, mas harmoniosamente composta.
E, ao jeito de Voltaire conclui o óbvio: uma palete de cores de tamanha qualidade e harmonia exige que haja um bom pintor.

 A nossa vida é tela branca, pronta a colorir.
Cabe-nos decidir que pintor vamos deixar que o faça.
Podemos ser nós próprios, e, egocentricamente, dar umas pinceladas mais ou menos habilidosas. Quem sabe, fazer apenas um rabisco torto, sem sentido, e convencendo-nos primeiramente, tentamos convencer também os outros de que se trata de arte abstrata. Vida abstrata.

Também podemos fazer uma parceria com algum pintor barato, de marca branca, mas que se intitulam de verdadeiros mestres, a preço de saldo. Contratar o mestre Ego, a mestra Vaidade, ou a mestra Futilidade, o mestre Utilitarismo, ou o mestre dos Encantos e Prazeres. Pintam belas telas. É verdade. Enchem-nas de cores vivas e imagens aprazíveis. Mas, eis que vem outro mestre. O mestre Tempo. E sendo um mestre que revela a verdade das coisas, mostra-nos que aquela obra era mera fantasia barata, que perde o brilho e o espanto. Era obra falsificada, não original.

 Podemos optar sempre por um outro pintor. Podemos optar sempre, não é verdade? Podemos optar por Aquele mesmo que nos permite ter o pensamento na linha de Voltaire. Podemos permitir que a nossa tela seja pintada com cores que jamais tempo algum esbaterá, apagará. E a obra não nos ficará cara. O preço é apenas a nossa vontade, o nosso querer.

Uma característica peculiar deste pintor é a sua assinatura. Não a encontramos visível no canto inferior direito. Nem sequer na parte traseira do quadro. Não a encontraremos visível em lado nenhum.
Ainda assim, sempre que contemplamos uma obra Sua sabemos que Lhe pertence, que é obra Sua.
Porque se há obras pintadas com tinta, Ele pintou a Sua obra intemporal com sangue, e n’Ele toda a Criação. Eu, e tu, incluídos, ganhamos n’Ele nova tonalidade. A tonalidade do humano feito divino, quando o divino, humildemente, se fez humano.

Agora é a hora. É sempre hora.

O que farás da tua tela? Quem permitirás que a pinte?

Lembra-te de que só há um artista que possui a palete de cores completa!

David Barbas. Natural de Recarei, terra onde nasceu e vive desde 1988.
Cristão, catequista, acólito, e Jhovem Hospitaleiro desde 2013.
Encantado por Ele, e pelo carisma de S. João de Deus: «Assim como a água apaga o fogo, assim a Caridade redime o pecado».