“Propagação da luz”
Crónica de Março de 2023
Mais uma Quaresma se aproxima do seu termo.
A proximidade do fim, seja de um tempo litúrgico ou de algum ciclo, deve lançar-nos para dentro e interrogar-nos sobre a caminhada. Por onde andei? O que está diferente em mim? O que transformei e o que deixei que se transformasse?
Será que quando me vejo ao espelho – aquele espelho interior que se chama consciência – agora me assemelho mais à imagem de Deus, a partir da qual fui criada e na qual me reconheço em verdade? Ou estarei antes desfigurada e distante dela?
Gosto de olhar a Quaresma como o tempo da decantação, em que se separa a heterogeneidade da mistura entre a pureza e as impurezas que se instalam no copo de cristal da alma. Nesta circunstância, em que a substância se torna turva, a luz, ao incidir numa vertente do copo, depara-se com obstáculos à sua passagem e não atinge a outra extremidade no seu total esplendor. E quanto é urgente que no copo não existam opacidades que ofereçam resistência…! É urgente que a luz possa tomar o copo por inteiro. É urgente que o copo não faça outra coisa que não seja irradiar essa luz que é Deus. É urgente que tu e eu aspiremos a isto tanto quanto nos for possível. Que esta não seja só mais uma Quaresma que se aproxima do seu termo. Que esta seja a Quaresma em que – pelo menos – começou a decantação, em que finalmente nos dispomos a ser perpassados pela luz da Ressurreição que agora a ninguém pode ser alheia.
“O elogio da árvore”
Crónica de Novembro de 2022
A floresta é a mais bela capela de recolhimento, não fosse essa construída pelas mãos d’O paisagista mais habilidoso.
As árvores fazem-me rezar. Arrancam o coração da superficialidade, impulsionando-o para Deus. Não sei se é certo dizer que me elevam; tenho dificuldade em conceber que, para me encontrar n’Ele, tenha de me elevar – Ele, que sendo o Altíssimo se faz continuamente baixíssimo por amor.
As raízes contemplam no silêncio da terra e ninguém as vê. Guardam a lição de que quanto mais se aprofundam no solo, melhor suporte são no tempo da ventania. Se consentirem em perder-se – ou encontrar-se – no que não se vê, mesmo sem ver, darão flor e fruto algures a jusante do xilema. Sei disto?
O tronco não tem medo de se dar até que não mais exista, para dele nascerem ramos. Procede da raiz e a árvore continua depois dele. É só um canal, um meio de condução – reto e feliz- e não tem mais pretensões.
Os ramos não conseguem ser indiferentes ao meio – são braços que acolhem o leito dos pássaros e se deixam conduzir pela brisa movendo, com eles, as folhas, que se agitam em comunhão com a tempestade e tomam parte na sua sinfonia. Essas são as mais frágeis e, de tempos a tempos, caem ao solo em atitude de desapego – mas que seria da árvore sem as folhas?
Meu Jesus, faz-me ser assim como as árvores.
“Sobre a vulnerabilidade”
Crónica de Outubro de 2022
Fugimos – com este plural quero fugir de dizer que quem foge primeiro sou eu – da vulnerabilidade. Olhamos para ela com desdém e Deus-nos-livre de aparentar esse fraco estado que pode ser alvo de olhares compadecidos. Até nos deixamos convencer que virtuoso é o contrário disto e desejável é um lugar cativo na mó de cima, glorioso e intocável, numa fortaleza aparente.
É urgente um esclarecimento conceptual: diz-se vulnerável daquele que se pode vulnerar, verbo que procede do étimo latino vulnus – que significa ferida.
Vulnerável é aquele que está sujeito a ser ferido. É aquele que, no peito, pode rasgar-se e dar de si. É aquele que está disposto a ser afetado, que é como quem diz, tocado pelo afeto. Parece-me uma condição sine qua non para o amor, isto de se deixar ferir e estar disposto a sangrar – um pouco ou tudo.
Olho Cristo na Paixão. É Ele o mais vulnerável de todos, Aquele que se deixa ferir e aceita a ferida por amor. Aquele que vê nos estigmas a manifestação da Sua glória e com estas mostra aos discípulos, na ressurreição, a vitória sobre o pecado e a morte. Pelas sua chagas fomos curados (cf. 1 Pd 2, 24), por isso, é justo que seja pelas chagas – pela vulnerabilidade – que o reconheçamos. É justo que pela vulnerabilidade nos deixemos ser reconhecidos.
Meu Jesus, faz-me vulnerável como Tu e diante de Ti.
Adriana Abreu. Nascida em 2000, em Setúbal, é buscadora de Cristo a tempo inteiro e estudante de medicina em part-time. Dedica-se à catequese de infância e aspira a poder dizer, um dia, como S. Paulo “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. Até lá, está em caminho.